É sobre o Mundo Freudiano como um novo e possível dispositivo de formação, garantia e autorização do analista, assim como vem sendo implementado na Confraria dos Saberes, que pretendo propor aqui uma reflexão critica e publica. Acima de tudo esta reflexão é um convite a todos aqueles implicados com a psicanálise, enquanto psicanalistas ou não, para que juntos possamos pensar novos caminhos para esta pratica de produção subjetiva para alem daquilo que tem se produzido na intimidade dos consultórios.
Que a experiência da analise individual, vivida pelo par analista-analisando, foi e é fundamental para o desenvolvimento da psicanálise, tal como a conhecemos e a temos praticado ate agora, é indiscutível, contudo acreditamos que isto não seja mais suficiente para manter viva a própria psicanálise. Assim, manter as coisas como estão seria a sua morte, assim nos ensina o poeta:
“A morte verdadeira é aquela que empurra para frente às coisas como estão
dia apos dia, ano apos ano, fantasma de uma casa derrubada”.
(Garuffi)
Logo, com a experiência do Mundofreudiano, estamos buscando inserir um elemento que consideramos importante para os devires da psicanálise e dos analistas em devir. Mas que elemento este? Acreditamos ser importante que o analista possa dar prova publica de seu contato com o inconsciente, e neste sentido, garantir que esta prova possa ser reconhecida não só por um único analista, ou grupo de analistas identificados a priori por uma dada instituição, nos moldes já propostos por Lacan, o que define um modelo de autorização de cima pra baixo. Mas que este reconhecimento possa se dar de baixo para cima, através de uma experiência onde uma “fraternidade de analista” possa reconhecer-lhe a experiência de seu inconsciente, condição sem qual ele pode fazer cargo de seu desejo de analista. Assim, a experiência do Mundofreudiano, pode não somente propiciar uma “legalidade” na autorização do analista, mas também uma “legitimidade” deste diante de uma dada comunidade de analistas, que vive como fraternidade, não somente a experiência imaginaria do exercício do poder do mestre, mas da radicalidade do inconsciente em sua dimensão Real.
Se vivemos com o Outro uma relação de extimidade, ou seja, o Outro é aquilo de mais intimamente estranho com o que convivo em mim mesmo, assim nos ensina Lacan, imaginamos que seria um ganho abrir aos outros as entranhas de nossas experiências inconscientes, ou seja, encontrar com este Outro publicamente, para que possamos efetivar na vida da comunidade psicanalítica esta idéia radical e tão cara a ética da psicanálise. Talvez seja esta a experiência radical que se passa no mundofreudiano, um encontro publico com o Outro. Isto e, no Mundofreudiano ha uma busca de que o analista em formação esteja ele no começo de seu percurso, seja ele iniciante ou praticante, possa dar prova publica de contato com as formações de seu inconsciente. Neste sentido, acredito que uma reflexão desta natureza seja de interesse da sociedade, na medida em que esta espera contar com uma pratica clinica que possa fazer um efeito de redução do sofrimento daqueles que chegam cotidianamente aos nossos divãs, e não ha outra maneira de garantir a efetividade deste efeito, se não garantindo que cada analista possa ter feito ele mesmo cargo de suas formações.
Neste sentido, o Mundofreudiano nasce também de uma serie de questionamentos relativos ao funcionamento das instituições de psicanálise no que diz respeito ao processo de gestão destas e sua relação com a formação de novos analistas. Com o significante Mundofreudiano metaforiza-se a existência de um espaço, onde, os membros da Confraria dos Saberes, e os atuais participantes dos cursos por nos oferecidos se reúnem em nome do inconsciente com o desejo de falar diante uns dos outros de si próprios, e de ai, também estabelecer uma pratica de escuta analítica publica. Com esta experiência buscamos transduzir e transpor para este espaço publico, elementos da experiência de analítica como a associação livre de quem fala (ou a disposição de falar aquilo que vem a cabeça), a escuta flutuante do analista (ou a forma escutar sem se prender a um detalhe mas que permita ao analista deixar que seu próprio inconsciente entre em contato com inconsciente do analisando), a transferência (a transferência ou dispositivo inconsciente que permite ao analisando posicionar-se diante do analista como se este fosse aquilo que ele deseja, e que permite ao analista reconhecer e interpretar estar posições durante o percurso da analise), a interpretação (ou o ato de enunciar algo, ou nomear o desejo do analisando, ou cortar a sessão num momento dado, em nome do inconsciente), etc.
Mas, por que fazer tal esforço de transdução e transposição dos elementos do set analítico para o Mundo Freudiano? Já não esta tudo garantido pelos dispositivos ate agora inventados? Em nossa perspectiva, seguindo a ética da própria psicanálise, alem não estar tudo inventado, entendemos que os dispositivos de formação vigentes criaram problemas que pedem novas soluções. Entre alguns dos problemas gostaria de refletir sobre a questão da mestria, algo que aludi em termos gerais na introdução deste artigo, ou seja: - Como possibilitar que o Discurso do analista, que e o reverso do Discurso do Mestre, possa fazer-se presente nos diferentes momentos da formação, e não somente na experiência da analise individual? Quando nos referimos ao Discurso do Analista, estamos falando de uma forma de estabelecimento do laço social, ou seja, uma ética e uma pratica que permite ao sujeito do inconsciente manifestar-se e ser reconhecido através da enunciação de seu desejo, ao qual ele procura reconhecer e dele fazer-se cargo, diminuindo assim seu sofrimento.
Retomemos então a questão da formação do analista em sua relação com a experiência do Mundofreudiano. Em termos gerais, a problemática da “formação” do analista tem e sempre terá um grande valor para os devires da psicanálise e sua relação com a sociedade. Só para situar as dificuldades de lidar com esta questão poderíamos nos perguntar sobre as possíveis implicações daquilo que e dito por Lacan em um de seus discursos, e que aqui cito livremente: - Assim como não se formam santos, também não se formam analistas. No entanto, as instituições de psicanálise, novas e velhas, continuam oferecendo cursos de formação para analistas, dados por analistas que se consideram formados. Mesmo que muitas o façam sem necessariamente nomearem, e assim se responsabilizarem, por suas praticas formativas. Impressiona, por exemplo, que não tenha sido inventado para alem do termo formação, seguindo assim o convite e os caminhos abertos por Freud e Lacan, novos significantes e novas praticas para continuar falando sobre e teorizando o ato de vir(a)ser analista.
Poderíamos ainda pensar nos diferentes problemas enfrentadas por Freud, quando da criação da IPA, quanto aos analistas que não eram médicos, ou mais tarde, quando os psicólogos de formação acadêmica também passaram a ser considerados legítimos herdeiros da invenção freudiana. Alias, ha não muito tempo atrás, quando comecei a enunciar meu desejo de analista, lá pelos idos de 1990, senti-me fortemente perseguido por este fantasma, já que não sou nem medico nem psicólogo. Ainda, ao alguns dias atrás, conversando com uma amiga italiana que e zoóloga e que tem muitos anos de analise, ela me relatou a mesma dificuldade e a recente proibição legal, na Itália, de que um sujeito possa exercer um pratica psicanalítica sem ser medico ou psicólogo. Neste sentido, acho que a questão do vir a ser analista e como isto se acontece em ato, e um fantasma a ser atravessado.
Acredito que este fantasma se materializa em um sintoma, que e o de deixar-se invadir pela demanda social de que as instituições de psicanálise possam garantir uma formação acadêmica que referende o exercício da pratica analítica, e que como tal a sociedade exige que seja profissional. E mais ainda, como pratica profissional, que a analise seja avaliada e avalizada, se quisermos garantida, pelo bem que ela pode fazer na vida dos outros, na vida da sociedade. Isto e o reverso do fantasma da sociedade capitalista que quer pagar por serviços eficientes e não por charlatões. Eis a relação intrínseca, do meu ponto de vista, fantasmática, que existe entre a chamada “formação” do analista, e os mecanismos que normalmente tem garantido historicamente o funcionamento e a gestão das instituições de psicanálise que tendem a basear-se na existência de alguns mestres para produzir analistas competentes. Ha que se garantir a qualquer custo a qualidade do serviço, e para tanto os mestres a moda acadêmica tem que ter qualidade. Uma qualidade que lhe de um respaldo quer diante de seus discípulos, também pagantes, quer diante da sociedade em geral. Neste sentido, alguns psicanalistas, assim chamados datas, tendem a ocupar uma posição de mestria acadêmica exigida pela sociedade e demandada imaginariamente por seus discípulos. Enquanto que, quase sempre renunciam a posição real que deveriam ocupar, a do psicanalista, dentro das diferentes situações do processo formativa, assumindo ai uma posição de mestre de fato.
Por isso, a meu ver os mecanismos ate agora inventados, com exceção da analise individual a que cada um de nos se submete, parecem andar na contramão desta. Neste sentido, eles parecem colocar o analista em uma forma normalizante, e normalmente concebida a imagem e semelhança de Freud e Lacan, mas sem exceção refletida a partir dos mestres que se constituem em cada instituição. Dito de outro jeito, quase sempre ha nos processos de formação, nas instituições de psicanálise, uma prevalência da encarnação imaginaria da figura de nossos grandes mestres, que afinal de contas só desejavam ser psicanalistas. Interpreto, e como se o simbólico, e, sobretudo dimensão real do vir(a)ser analista, e, portanto do desejo de analista, fosse reduzida tão somente a um jogo de espelhos. Neste sentido a formação parece se reduzir a um toque de trabalho forcado, algo da ordem de um trabalho obsessivo que pretende responder a relógio de ponto que vem estabelecer uma cronologia dos anos de analise e da quantidade de textos de lidos da obra dos mestres daquela escola, Freud, Lacan, etc.
Em nossa experiência, na Confraria dos saberes, o Mundofreudiano tem promovido o devir do analista, enquanto um dispositivo que possa provocar um deslizamento entre o momento publico da formação acadêmica do analista e a experiência de analise, dando a experiência do inconsciente o lugar que de direito ela deve ter na formação do analista. Dai para aqueles que ainda não estão em analise o Mundofreudiano parece favorecer a construção de uma demanda de analise. Para os que estão em analise, ele parece intensificar o trabalho que vem sendo realizado na experiência individual. E para os que já são analistas, ele promove uma possibilidade de encontro destes com os pontos cegos deixados como restos de suas próprias analises. Neste sentido, o Mundofreudiano, pode ser uma garantia "pra que o sujeito diga
Não! A esse brincar-passar-de-anel da intersubjetividade, onde o desejo só se faz reconhecer por um instante para se perder num querer que e querer do outro”.(Lacan)
Acreditamos que se o Discurso do Analista, no sentido que deu Lacan a esta expressão puder circular enquanto tal, como elemento ativador do inconsciente, pelo conjunto das situações formativas propostas pelas instituições de psicanálise, ai teríamos encontrado uma forma melhor de garantir que nos consultórios de psicanálise os analistas pudessem se virar melhor a partir da ética própria da psicanálise. Enquanto pensava sobre estas coisas encontrei esta citação de Lacan que parece refletir o que estamos buscando com a pratica do Mundofreudiano como dispositivo que pode proporcionar garantir a formação do analista comom vir(a)ser permanente:
“O mundo freudiano, ou seja, o da nossa experiência comporta que é esse objeto, das Ding, enquanto o outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar. Reencontramo-lo no Maximo como saudade. Não e ele que reencontramos, mas suas coordenadas de fazer, é nesse estado de ansiar por ele e de esperá-lo que será buscada, em nome do principio do prazer, a tensão ótima abaixo da qual não ha mais percepção nem esforço.”
Logo, O Mundo Freudiano, nos parece uma forma de introduzir na formação do analista algo da ordem do Real.